Tem quem receba de herança uma casa, um carro, dívidas ou promessas não cumpridas. Eu herdei uma calopsita. Atende pelo nome de Tico, mas você pode chamá-lo de Matusalém, sem problemas. Assim como o personagem bíblico, ele está perto de completar mil anos. Faz jus ao nome. Foi recebido, na casa dos meus pais, recém nascido, isso há mais de vinte anos. Calculo que já viveu uns vinte e três.
Foi criado em liberdade, apesar do cativeiro. Fui ambígua? Explico: ele não vive na natureza, não interage com seus pares e tem um humor de cão, se bem que os cães, que passaram em casa, eram mais tranquilos. Com suas cem gramas de ferocidade e um bico ágil em furtar desde pedras em colares, até bicar mãos e patas oferecidas, ele é um peso pesado em qualquer luta livre.
Foi criado solto pela casa, com a porta da gaiola aberta e uma asa cortada, para impedir um voo inesperado. Obra de sua tutora, minha mãe, que morria de medo que ele fugisse e morresse à míngua, com fome e sede em uma esquina lotada de gatos. Sempre me angustiou a ideia de cortar uma asa para impedir o seu voo de libertação. Talvez isso explique a fúria que ele carrega no coração.
Preciso ser justa e dizer que o terror de asas adora um cafuné na cabeça e até dá uma beijoca no ombro quando está em seus melhores dias. Não são muitos, mas esses dias existem, como os anos bissextos.
Quinze centímetros de altura, penacho em riste, entre assobios e cantorias que misturam estrofes do Hino Nacional com versos, politicamente incorretos, do cancioneiro infantil “Atirei o pau no gato”, ele domina seu território. Não tenho ideia de como aprendeu, as letras e melodias, mas seja quem for, o professor fez uma bagunça na cabeça de seu pequeno e tempestuoso aluno.
Mudei de casa, de bairro e de fornecedor de ração para o meu “velhinho de asas”. A atendente simpática, me advertiu que eu estava pedindo a comida errada, que tinha uma mistura em proporções perfeitas para a saúde e vitalidade das calopsitas. Agradeci a sugestão e perguntei quanto tempo em média vivem as calopsitas. Ela feliz com minha curiosidade me respondeu que na natureza uns quinze anos, mas com uma vida saudável, em cativeiro, chegam aos vinte. Então, expliquei que o Tico, em questão, tem por volta de vinte e três anos, comendo girassóis e uma bolacha cream cracker no café da manhã.
Percebi que abalei suas convicções sobre a alimentação ideal dessas aves. Ela não me ofereceu mais nada, pesou o que pedi, e elogiou a longevidade do imortal. “Esse aí leva uma vida boa, com certeza!“
Atualmente as peninhas têm caído e ele anda lento, tropeçando nos próprios passos. Passa boa parte dos dias quietinho, sem mais serenatas esquizofrênicas e é visível que quer um cantinho sossegado.
Olhar para ele é dar de cara com a velhice. Me surpreendo com a rapidez com que os últimos dez anos se instalaram, em alguns dias. Penso em mim, e em minha imagem no espelho. Meu corpo também é um palco de mudanças.
Observo suas transformações e me surpreendo que em essência ele não mudou. Sua natureza rebelde permanece intacta, apesar dos movimentos desajeitados e em câmera lenta.
Espero envelhecer sabendo resistir. Essa é a herança que o “Terror de asas” vai me deixar.

Paulistana, psicóloga, leitora. Encontrou na escrita o melhor lugar. Tem dois livros infantis publicados, “Abelardo, estropiado” pela Ed. Caravana e “Refugiadas- Escapando de um céu em perigo” pela Editora Urutau. Tem alguns contos publicados em coletâneas e revistas literárias. Participa do Coletivo Escreviventes. Em 2023 teve uma crônica premiada no 4o Prêmio Escriba de Crônicas. Atualmente reside em Piracicaba- S.P.
12 respostas em “Uma herança de asas”
O tempo passa sorrateiro na tentativa de não ser percebido. Na maioria das vezes, consegue seu intento.
Texto agradável de ser lido. Parabéns, Maribel.
Agradeço sua leitura e seu comentário, Neuceli! 🙂
Que emocionante sua crônica, cheia de amor por essa ave tão especial. Parabéns pelo texto lindo! 👏👏❤️
Obrigada pela leitura, Gisela! Um abraço afetuoso 🙂
Que linda crônica, Maribel. Deixou a vontade de ter sempre notícias do Tico. Envelhecer sabendo resistir, mesmo com a asa cortada que analogia perfeita, me encantou. Parabéns!
Que gostoso ler seu comentário Edna, era exatamente sobre a passagem do tempo que eu queria escrever. E se quiser notícias dele, é só perguntar rsrsr Beijos 🙂
Amei sua crônica, Maribel! Texto delicioso e repleto de imagens, que nos fazem voar até Tico, a calopsita. A gente lê em um fôlego. Para mim, ele é ainda mais especial, porque já senti a força de suas bicadas e a procura por chamegos, sem falar na performance dele ouvindo meu filho cancioneiro viajante. Parabéns!
Obrigada pela leitura, Vilma! Tiquinho fez história nas nossas vidas. Já estou com saudade dele… Bjosss
Que crônica linda minha amiga querida. Um olhar divertido sobre o que herdamos e delicado sobre o por do sol da vida. Bjs
Obrigada pela leitura, Céu! Uma felicidade ser lida com afeto. Beijoss
É bom ter pássaros como este ao seu lado. Uma calopsita com história bastante movimentada pelo que li.
Mas todos tem um ensinamento a nos dar, até mesmo os pássaros. É como se dissesse a nós: “envelheça tranquilo, seja você mesma, currupaco, paco!!” (é que estou lendo Angústia, de Graciliano Ramos, e a governanta do protagonista fala exatamente assim.)
É aquela história do tempo passar pra todos nós e a herança que deixaremos pros que nos sucederão é fundamental.
Até mesmo as calopsitas tem seu valor. O valor sentimental e nostálgico.
É isso. Um abraço e até a próxima.
Obrigada por sua leitura Mario! 🙂