A Lu, minha companheira, e eu temos uma gata chamada Kaoru. Cinco quilos castrados de fome e sono. Aliás, se ela estiver dormindo, você poderia confundi-la com um pequeno puff ou com uma almofada felpuda, não fosse o bafo de sachê de salmão com ervas finas misturado com o odor do talco antipulgas de lavanda. No entanto, apesar dos nossos contínuos esforços para dar a ela uma vida com todos os confortos que a civilização tem a oferecer (e que nós mesmos, seus tutores, raramente gozamos), a Kaoru tende a mostrar, com frequência, comportamentos que estariam mais apropriados aos tigres-dentes-de-sabre, caso os tigres-dentes-de-sabre dormissem sobre uma cama cor de rosa com desenhos de peixinhos posicionada entre uma TV de Led e um ar-condicionado sempre ligado.
Tentando entender algumas condutas pouco republicanas da Kaoru, encontramos incontáveis artigos e vídeos na internet dedicados a garantir que muitos dos seus hábitos menos progressistas são resquícios da vida que os antepassados dela levavam quando habitavam as matas. Os autores destes estudos tentam provar que conviver com nosso pet – cuja experiência mais selvagem se deu no dia em que ela, tentando beber o iogurte grego light que fora esquecido sobre a mesa, derramou metade do líquido nos seus olhos e sobrancelhas — seria aventura equiparável àquelas vividas pelos personagens de Conrad e Kipling.
Bem, de fato, é comum, que, por exemplo, nossa gata se esconda atrás de algum móvel quando abro a porta de casa ao fim do dia, com o objetivo de preparar ataques que seus ancestrais devem ter usado na caça de mamutes ou outras bestas de grande porte. O problema é que agora o hipotético mamute (ou besta de grande porte) sou eu, cansado do trabalho diário, com a mochila nas costas e as chaves na mão, tendo que lidar com, além dos problemas típicos da rotina, uma genealogia de patas e unhas afiadas por milênios agora cravadas nas minhas urbanas e adestradas canelas.
É normal também que a Kaoru, depois de usar o banheiro, saia correndo pela casa em altíssima velocidade, esbarrando nas paredes e deslizando pelo parquet com energia e ímpetos que ela não demonstra em nenhuma outra ocasião. Segundo muitos autores, os felinos fazem isso para se afastarem com rapidez de seus dejetos corporais, cujo cheiro poderia atrair os predadores que vivem nos arredores. O problema é que os “arredores” da Kaoru ficam no pacífico bairro Cidade Nova e os únicos possíveis predadores das redondezas são a meia dúzia de pardais viciados em pipoca de micro-ondas que visitam nosso pátio diariamente e o Jaime, o pug do vizinho, cuja característica mais ameaçadora é ganhar um aniversário temático todos os anos (o tema de 2023 foi Frozen!). Caso alguns destes animais representassem real perigo para minha gata — o que, fique claro, duvido muito —nenhum deles seria capaz de farejá-la pelas fezes. O Jaime deixa as suas pela calçada com a naturalidade de quem nunca ouviu falar em cadeia alimentar, enquanto os pardais estão anestesiados pelo cheiro da Yoki sabor manteiga que devoraram no café da manhã.
Outro fator que descobrimos possuir explicação na linhagem da espécie são as bochechas enormes da Kaoru, traço que, até o momento, colocávamos na conta dos inúmeros petiscos que ela aprecia a cada proeza que realiza, o que pode incluir feitos de maior relevância, como subir no sofá quando é chamada, até realizações de menor pompa, como acordar todos os dias e respirar. Mas os especialistas garantem que este considerável aumento das calotas faciais é uma defesa natural feita para proteger o rosto e o pescoço dos felinos em brigas de alta periculosidade. Eu olho para Kaoru aqui do meu lado, que dorme profundamente enquanto escrevo esta crônica, fito suas bochechas que deixariam o Don Corleone e o Quico passarem por desnutridos, e me pergunto que tipo de gigante pré-histórico ela pretende enfrentar com tanto tempo de preparo, afinal a única briga da qual ela participou nos últimos anos foi contra o controle remoto da nossa TV e a decisão unânime foi nocaute técnico a favor do objeto.
Os artigos mencionam ainda inúmeros comportamentos que foram herdados da antiga e desafiadora vida selvagem que os gatos do passado levavam. Assim, o hábito de prender nossa mão com as patas dianteiras e chutar com as traseiras era recurso utilizado para estrangular e eviscerar pequenos animais. O que os textos não explicam é por que a Kaoru replica o mesmo ataque na mão que a alimenta diariamente. Afiar constantemente as unhas tratava-se de estratégia para estar sempre preparado para os desafios e garantir maior sucesso de sobrevivência. Como isso não impediu a Kaoru de ter medo do rato de borracha roxo que compramos pra ela no Natal não é discutido nem em rodapé. Entrar em caixas de papelão deixadas pelo chão teria a ver com um desejo de abrigo e proteção. O que ocorre, contudo, quando a Kaoru fica entalada em uma caixa da Amazon que tem a metade do tamanho dela ninguém comenta.
Subir nos armários e cortinas teria o intuito de ver inimigos à distância e estabelecer rotas de fuga seguras. Deitar nos pés da cama seria um tipo de guarda noturna para o bando. E por aí vai. O que não condiz com estas hipóteses todas é o fato de que as inúmeras táticas e artimanhas aprimoradas para gestar a máquina de matar perfeita estejam presentes no mesmo bichano que tem refluxo se come a ração premium extra-soft muito rápido e é acometido por soluços quando bebe água em potes que não estejam a 14 centímetros de altura do chão. Convenhamos que estes especialistas devem estar interpretando algo errado.
Até porque nenhum deles explica os outros hábitos que minha gata também repete diariamente, mas que jamais poderiam ter sido aprendidos nas selvas. Ora, para começar a Kaoru dorme e ronca em alto volume por todos os lugares disponíveis da casa, a qualquer momento do dia e sem nenhuma preocupação com as possíveis ameaças ao redor. Os pardais do pátio poderiam sufocá-la com um saco de pipocas de micro-ondas, se quisessem. O Jaime poderia entrar aqui em casa vestido de Elza e garroteá-la antes mesmo que ela pudesse dizer “Let it go”. A Kaoru jamais saberia o que a atingiu. Onde estão os instintos ancestrais nestas horas?
Da mesma forma, minha gata tem uma espécie de sonar natural para pacotes industriais sendo abertos. Não importa o cômodo em que eu esteja, basta rasgar um saco de chips ou de bolachinhas recheadas para ver a Kaoru surgir subitamente de algum canto com suas bochechas treinadas para mil octógonos. Como os biólogos explicam um negócio desses? Em que momento da evolução felina, a espécie sobreviveu à base de Fandangos de presunto e Bono de doce de leite?
Enfim, enquanto os artigos da internet mantêm silêncio sobre estas questões, eu sigo vivendo esta rotina entre a minha sala e o Serengeti, trazendo questionamentos que nem os inquietos protagonistas de Kipling nem as almas atormentadas de Conrad precisaram responder. No processo, sigo protegendo minhas canelas, afinal, e nisso a Kaoru e eu somos iguais, não foi com descuido e desatenção que nossos ancestrais conseguiram nos trazer até aqui.

Daniel Baz nasceu em Rio Grande-RS. É professor do IFRS – Campus Rio Grande. Escreveu crônicas semanais para o Jornal Agora, entre 2015 e 2020, e para o periódico O Litorâneo, entre 2020 e 2021. Publicou poemas, contos e crônicas em revistas literárias e antologias, como Revista Vacatussa, Planeta Fantástico – vol. 2, Quatro cantos em contos e crônicas do Brasil, Kafka: sonhos intranquilos, Coro: coletânea de poemas, De labirintos e espirais: sete poetas de Rio Grande, Haikais e Tankas e participou do romance coletivo Condomínio Saint-Hilaire. Além disso, é autor do livro de poemas Antes que o mundo aconteça (Concha, 2016), do volume de crônicas finalista do Prêmio AGES Livro do Ano 2022 Formas de fingir pássaros (E-Liber, 2021) e roteirista da história em quadrinhos Atlas e Dante, finalista do Prêmio Geek em 2021, com desenhos de Law Tissot.
4 respostas em “Tigres de salão, gatos de savana”
Crônica maravilhosa, perfeita e eu tenho certeza de que os gatos ainda vão dominar o mundo… Amooooooo gatos, eles são inteligentes demais e tudo de bom em nossa vida
Maria, acho que eles já dominaram. Muito obrigado pela leitura e pelas palavras. Abração!
Não há especialista no mundo que possa entender os sentimentos dos animais domésticos, principalmente os cães e os gatos.
No meu caso, Daniel, são os cães e juntando com os da minha irmã, são cinco de todos os tipos e tamanhos, incluindo mãe e filho labrador.
Se já acontece tudo isso que tu descreveste com relação a tua gata, imagina eu com três cadelas e dois cachorros com idades entre 13 e 11 anos? A coisa é bem variada aqui.
A mais velha das cinco que pertence a minha irmã é do tipo radar meteorológico. Toda vez que chove ela sempre late pra valer e em tempestade mais ainda, só pra te dar um exemplo.
Devido a todos esses instintos que possuem, os animais sempre nos desafiam a ser criativos e a ser melhores como pessoa.
E não há dinheiro no mundo que pague o amor incondicional que eles tem conosco, mesmo com suas “manias” herdadas de seus ancestrais.
É isso e um grande abraço. Até a próxima.
Muito obrigado por mais esta leitura, Mario. Abração!