De início, informo-lhes: esta é uma crônica-confissão. Confissão de um comportamento ignóbil que mantive nos últimos anos e, por conseguinte, de como fui injusto com a escritora Martha Medeiros. Sim, a Martha Medeiros. Linha por linha nesta crônica, tentarei dar-lhes o contexto, a fim de jogar luz às minhas ações. Acompanhem.
Desde que comecei a ler com regularidade, anos atrás, e passei a me considerar um leitor – o que se deu de forma tardia – tornei-me admirador da Martha Medeiros. Aos domingos, na casa de minha avó, sentávamo-nos ela e eu, em sua cama, a Zero Hora em mãos, e nos debruçávamos sobre as crônicas da autora.
Uma das maiores cronistas de nosso país, campeã de vendas, vencedora de muitos prêmios literários nesses mais de 20 anos de carreira. E também a pessoa a qual, nos últimos anos, sempre que pude, difamei.
Meu reprovável comportamento origina-se de há tempos, época de cursinho pré-vestibular, quando, ao iniciarem-se as aulas, conheci uma colega por quem rapidamente me apaixonei. Uma dessas paixões bobas: um sorriso no meio de uma aula de biologia, e acreditamos ter dado de cara com o amor. Fazer o quê. Para preservar o nome da colega por quem me apaixonei, chamemo-la, nesta crônica, de Kelly.
A Kelly e eu, pouco a pouco, conforme os dias avançavam, conhecíamo-nos melhor. Uma conversa aqui, outra acolá, descobríamos gostos em comum: livros, músicas, crenças e outras peças dos elementos que nos fazem estreitar laços com alguém.
Tornamo-nos amigos, mas, apesar de nossa proximidade – e talvez justamente pela proximidade – eu nunca sabia como chegar nela e externar meus sentimentos. Éramos colegas e amigos, e as linhas que demarcam o que há para além disso são tênues e ardilosas.
Eu procurava, de forma sutil, dar alguns indícios, tornar claro o escuro, jogar pistas leves pelo caminho, como se me escondesse atrás de uma árvore, mas deixasse uma parte do corpo à mostra para ser encontrado.
Quando contávamos dois ou três meses de convivência, surgiu uma oportunidade de ouro. Em um sábado pela manhã, teríamos um aulão-revisão para o Enem, e justamente neste dia, a Martha Medeiros estaria na feira do livro, autografando. A Kelly era uma fã de carteirinha da Martha, e intuí que seria o momento perfeito para passarmos um dia juntos, que não fosse no ambiente das aulas, e conhecermos uma de suas escritoras favoritas; convidei e ela aceitou.
Era um sábado nublado, que logo veria uma fina chuva cair do céu, o que, para quem está sob efeito da paixão, pode significar o prenúncio de algo importante.
Depois da aula, fomos a um restaurante, visitamos algumas lojas no centro e só depois acabamos na feira do livro.
Perto da hora em que a Martha autografaria, uma fila começou a se formar. Quando olhamos, já ia longa, e só me recordo de termos ficado mais de hora aguardando.
Na fila, lá pelas tantas, percebemos que todas as pessoas à nossa frente e às nossas costas, carregavam um livro da Martha nas mãos, menos nós. Foi aí que descobrimos: nesse dia, a Martha lançava uma trilogia comemorativa pelos 20 anos de carreira, e nós ali apenas para bater um papo e tirar uma fotografia. A doce inocência da juventude. Entretanto, como a Kelly faria aniversário dali dois ou três dias, achei que cabia tentar um avanço no campo da conquista. Saí da fila, fui até uma banca e comprei os livros da Martha. Presentes de aniversário.
Finalmente, quando nossa vez chegou, a Martha nos recebeu com um sorriso no rosto, extremamente simpática, como sempre transmitiu ser por meio das crônicas. Entreguei os livros e ela perguntou em nome de quem seriam os autógrafos. Me adiantei dizendo que no nome da Kelly, que ela faria aniversário dali uns dias, era uma grande fã etc, etc.
Então, eis o fato:
De súbito, a Martha levanta a bola:
– Vocês são namorados? – E mal as palavras saem de sua boca, a Kelly, de bate pronto, responde como se fosse a continuação da mesma frase:
– Amigos.
Engoli em seco.
Sim, éramos amigos, mas a maneira, a velocidade e o tom daquela palavra me acertaram como uma bolada no estômago. O que senti, nesse fatídico momento, é que para ela éramos e seríamos sempre apenas amigos.
A chuva apertou.
Andamos mais um pouco pelas bancas, antes de irmos embora, a Kelly feliz da vida com os livros e o encontro com a Martha. Eu, nem tanto.
No dia do aniversário dela, fizemos algo juntos, mas não rolou nada. Nunca rolou nada.
Nos meses seguintes, ainda a vi engatar namoros com outras pessoas. Uns babacas. Desde então, sempre que olhava algum livro da Martha, lembrava-me desse episódio. De como minhas expectativas haviam ido por água abaixo. De como acreditava estar no caminho certo da conquista, de como as peças pareciam ir-se encaixando, para depois descobrir que eu apenas criava uma bonita ficção em minha mente. Parei, a partir disso, de consumir livros da Martha. Comecei a inventar as mais tolas justificativas, nas quais nem eu acreditava, procurando ser convincente: é uma escritora mediana, é literatura para mulheres, são textos rasos, ou qualquer outra mentira que me ocorria no momento.
E assim foi durante anos. Até agora.
Acontece que, dia desses, minha vó, que nunca soube de nada disso, me presenteou com um livro recente da Martha. Eu não tinha como recusar um presente da vó. Ao pegar o livro nas mãos, fui acometido como que por uma epifania, uma consciência quase dostoievskiana sobre meu eu. Foi como se enxergasse a mim mesmo olhando à distancia, e tornou-se nítido o quanto eu estava agindo feito um idiota. Que passei anos enganando-me a mim mesmo e sendo injusto. E é trabalhoso carregar mentiras por tanto tempo, desprezível difamar alguém que te tratou com gentileza e até tentou te dar uma força com aquela pergunta – que eu mesmo nunca tive coragem pra fazer.
Passou.
Talvez a Martha nunca saiba desse rolo todo, talvez nunca leia este texto e provavelmente nem se lembre desse episódio.
Mas a vó costuma dizer que as coisas certas são certas mesmo quando ninguém está olhando.
E nunca é tarde para uma pequena reparação histórica e um pedido de desculpas, quando são sinceras.
De minha parte, fizemos as pazes: abri o livro que a vó me deu e li uma crônica. Depois fechei o livro, olhei para a fotografia da autora na capa, e lhe disse baixinho, feliz por nos encontrarmos novamente:
– Sinto muito, Martha.

Formado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Gostava de ler e escrever, mas começou a levar as duas partes com seriedade só a partir de 2019, ano em que iniciou os estudos em escrita criativa.
Foi em 2019 também que estreou como autor, o livro coletânea Pequenas Histórias de Porto Alegre, pela editora Metamorfose.
8 respostas em “Sinto muito, Martha”
Será que a Kelly leu? Amei a crônica Poeta, parabéns!
Olha, sempre fui uma leitora voraz, mas confesso que ultimamente ando dislexa, com muita dificuldade de terminar até mesmo uma pequena crônica. Fico muito feliz quando uma me prende até o final, palavra por palavra, como a sua. Parabéns!
Muito divertido o teu texto, apesar de eu não gostar nem um pouco do que a Martha escreve hehehe.
Hehe obrigado pela leitura e pelo comentário, Carol! Fico feliz com teu retorno =))
Abração
Nossa, Bruno! Adorei a crônica! Texto gostoso de ser lido e que atiça nossa curiosidade! Parabéns 👏🏻👏🏻
Obrigado pela leitura, cara colega! Fico feliz com este retorno. Um grande abraço
A chamada pra ler a crônica atiçou minha curiosidade, adorei! Realmente, a Martha não teve nenhuma culpa,hehehe! Parabéns, Bruno!
Nada como uma fofoca amorosa, não é? Hahah Obrigado pela leitura e pelo comentário. De fato ela não teve culpa nenhuma, mas fazer o quê!