Nunca consegui ler no ônibus. O balançar me dá — ou dava? — uma vontade de vomitar enorme. Dor de cabeça e sempre precisava ficar sentado no ponto esperando a minha alma voltar.
Trabalhei numa loja de fraldas e precisava estar no ônibus às oito para entrar no trabalho às nove. Precisava estar no ponto para esperar o ônibus às sete e meia, pois ele poderia passar antes.
Começava a me preparar para o trabalho às seis e meia para dar tempo de ir esperar o ônibus. Acordava às cinco e meia, pois precisava fazer o café com minha esposa que também iria para o trabalho, só que ela entrava às sete.
Ou seja, meu tempo de leitura era escasso, já que chegava em casa às sete da noite. Saia do trabalho às cinco da tarde, o ônibus passava às seis. Pensando agora, essas pequenas esperas de uma hora poderiam ter sido mais proveitosas.
Foi aleatória a decisão de começar a ler no ônibus.
Decidi que iria começar a correr, não sei em que momento, mas decidi. Só precisava comprar um tênis para isso e precisava entender um pouco sobre corrida. Porque deve ter algum jeito certo de correr. Não deve ser só correr.
Então, fui no grande amigo Google e pedi alguns livros sobre corrida. Fugi dos livros mais técnicos e até cogitei em comprar um mangá sobre. Pensa comigo, tem imagens e fala sobre correr, era o livro certo para aquele momento.
No fim, rolando a página da Amazon, me deparo com um livro chamado “O que eu falo quando falo de corrida”, de um tal de Haruki Murakami. Isso aconteceu em meados de 2019. Eu não lia nada na época e mal sabia o nome de outros autores que não estavam na minha estante.
Esse japonês, escritor de surrealismo, com setenta e poucos anos, corria maratonas. Escrevia livros maiores que “A Coisa” do King, e naquele momento, sem pensar muito, decidi comprar.
Na sinopse, aquelas que super vendem o autor em vez de falar sobre o livro, contava que ele já tinha sido publicado e traduzido em um monte de país que não chegarei a conhecer. Que ele era — é — um dos grandes nomes da literatura contemporânea. Eu não fazia ideia de quem era o japonês.
Comprei o livro. Dois dias depois, chegou o livro.
Livro fininho. Umas 150 páginas mais ou menos. Tamanho tradicional.
Pesquisei sobre o Murakami pela internet. Entrei numa imersão. Vi algumas entrevistas e vídeos de entrevistas. Isso levou alguns dias e só depois tirei o livro do plástico.
Minha expectativa sobre o livro era aprender a correr. Como se aprende a correr lendo, não sei, mas esse era o plano.
Murakami realmente ama correr. Era isso que mostrava no livro. Ama correr como ama escrever e conseguiu ligar os dois amores de uma forma tão bem encaixada que fiquei surpreso.
Correr para ele é muito mais do que fazer um exercício e manter o corpo saudável. É como se isso fosse o gás para ele poder escrever.
Comecei o livro num café da manhã. Já estava bem atrasado para o trabalho. O ônibus passaria em alguns minutos. Eu ainda precisava guardar umas coisas, ajeitar outras. Achar minha mochila. Colocar água para o cachorro. Achar o passe de ônibus. Colocar o tênis. Colocar a meia. Trocar de camiseta. Quem sabe tomar um banho? Não espera, não dará tempo. Nem estou tão fedido assim.
Levanta o braço. Cheira. Precisar, precisa.
Não fiz nada. Continuei sentado no banco que fazia parte do conjunto de mesas e cadeiras.
Quando paro para pensar naquele livro, o primeiro de muitos que acabei lendo do Murakami, ainda fico indignado de como o livro é uma biografia, um livro de filosofia, um livro sobre escrita e um livro sobre corrida.
Peguei o segundo ônibus. Estava muito atrasado. Uma meia diferente da outra. Paguei a passagem com dinheiro, não tive tempo de achar a carteirinha de passe. Joguei um perfume e rezei para o desodorante ter a potência prometida.
Sentei no ônibus com o livro ainda em mãos. Eu passava mal lendo até mensagens. Passava mal lendo as placas no trânsito. Não podia ver um outdoor que já sentia o estômago ruim.
Abri o livro onde havia colocado um pedaço de papel toalha para marcar a página e comecei a ler.
O ônibus balançou. De um lado para o outro. E nesse momento, você deve pensar que direi algo como:
“E naquele momento consegui ler o livro, sem me sentir mal, devorei o livro. Durante as curvas do ônibus, páginas e páginas eram viradas com uma alegria que todos que estavam ao meu redor admiravam e sentiam a força que aquela leitura irradiava em minha mente. Como se a caixa de Pandora estivesse sendo aberta e, em vez de todo o mal, o que saía de lá era um texto contemplativo que me levava para longe daquele assento de acolchoado azul.”
Infelizmente não foi bem assim. Agora te fiz esperar um relato bem triste sobre como passei mal. No entanto, nem passei tão mal assim.
Desci do ônibus bem atrasado. Joguei a culpa no ônibus. Um trânsito só. Fiquei esperando um tempão, acredita? Deviam colocar mais coletivos na rota que faço. Deve ter uns dois só. Onde vamos parar, né?
Voltei para casa e tentei ler de novo. No ônibus lotado, em pé perto da porta, coloquei a mochila entre as pernas e abri o livro com uma mão enquanto segurava o apoio para me equilibrar.
Cheguei em casa com um pouco de dor de cabeça. Passei a noite pensando no livro. Não consigo dizer se estava preso pela história. Pelos relatos ou pela forma narrativa.
Nunca fui de ler esse tipo de livro que conta a história de alguém ou que ensina alguma coisa. Minha esposa até achou engraçado eu estar lendo um livro sobre como correr. Mesmo eu dizendo que o livro não era só sobre aquilo. E não é.
Terminei o livro em poucos dias. Como eu disse, era um livro curtinho. Cheio de possíveis ensinamentos, que não foram escritos como ensinamentos. Era como se o Murakami quisesse apenas sentar e falar algo.
E isso pode ser notado em todos os seus livros. A narrativa dele não me faz sentir que é alguém contando uma história inventada. É como se fosse um relato, o que naquele livro realmente era um relato, então faz sentido.
Não sei dizer bem o motivo de ter ficado preso ao Murakami. Talvez estava numa onda de ler sempre as mesmas pessoas sem explorar nada muito novo. Ou fui sinceramente tocado pela forma que ele conta suas histórias.
Passei a ler mais no ônibus. O livro seguinte foi um de contos. “O Elefante Desaparece”, esse é o nome. Sim, do Murakami também.
Contos que ele conta como relatos. Não sei explicar muito bem, mas consigo imaginá-lo contando aquilo numa noite junto de alguns amigos. Mesmo que seja em terceira pessoa, seria como se ele contasse o que aconteceu com algum conhecido.
Depois de um tempo sem ler nada, aquele deve ter sido o ano que mais li. Não só coisas do Murakami que são tijolos e já dá para colocar na lista como três livros em vez de um, mas acabei relendo alguns livros que talvez poderiam me passar essa mesma sensação.
Passei a escrever mais, tentando alcançar esse jeito de contar histórias. Não foi o meu melhor ano em relação à escrita. E no ano seguinte acabei perdendo o emprego. Não por conta dos atrasos.
No fim, não comecei a correr.

Maicon Moura, nascido em 1996, é um escritor brasileiro multifacetado que já explorou diversos gêneros literários em sua carreira. Autor de dois romances, uma coletânea de ficção científica e diversos contos. Maicon trabalha em tempo integral como designer gráfico, mas sempre encontra tempo para contar boas histórias. Ele reside no interior de São Paulo com sua esposa e seu cachorro WillieNelson.
Acompanhe em: @mouranius
3 respostas em “Querer correr, passar mal no ônibus e do nada Murakami”
Relato incrível, Maicon! E Murakami é mesmo sensacional
Uma história muito fascinante. Murakami sempre nos ensina coisas interessantes, embora eu tenha lido pouco sobre eles.
Quando tu não nasce pra correr, não adianta correr por mais que treine. O dom as vezes faz a diferença. Escrever é o seu caminho, assim como o meu.
Um abraço e até a próxima.
Descobri que correr é para quem sempre corre, começar do nada, é muito difícil. No entanto, escrever da pra ir escrevendo haha