Ouvi dizer por aí que quem escreve tem um jeito de contar as histórias, uma
coisa particular na forma de narrar, que chamam de “voz narrativa” ou de “eu
poético”. Uma porção de você que, ao se manifestar para o mundo, é
reconhecível. Seu selo de autenticidade. Como nas pinturas de Caribé ou de
Miró, que nem preciso ler a assinatura para saber a autoria.
Tem sempre alguém que diz “essa voz pode ser melhorada, aperfeiçoada,
lapidada”. Querem lapidar algo que é sua assinatura e está presente na escrita
de versos, na música, na receita de bolo que sua avó te passou, na canção de
Caetano. Você consegue imaginar uma canção de Caetano sendo
aperfeiçoada? Além disso, não venha aqui me dizer que a receita de bolo
passada há 3 gerações numa família não tem narrativa! Haja história para
manter a receita viva.
Se eu tenho algo que é só meu, como tatuagem na pele, o que significa
aperfeiçoar?
A meu ver, significa ser igual aos outros, mas de um jeito diferente. Temos
muita dificuldade em entender o mundo quando as coisas não se enquadram
num espacinho. Criar regras e requisitos faz parte do nosso processo de
compreensão e legibilidade.
Por exemplo, quando alguém tenta o ENEM, tem lá uma lista de coisas que se
espera para que a escrita seja legível por todos. Alguns desses quesitos são:
narrador, tempo, trama, espaço e personagem, clímax e desfecho. Não sei se
um dia eu escrevi assim, ticando todos os itens desse check list, mas lembro
do dez em redação no vestibular (e também do 8, do 6, e do 9, tentei várias
vezes).
Enquadrar
Padronizar
Repetir
Igualar
APERFEIÇOAR
Comparar não, porque a comparação, como disse minha irmã, é o atalho para
o inferno. Acrescento: descida rápida, com emoção! Uhuuuu… não compare
seu texto com o de mais ninguém.
Celebrar quesitos como uma forma de contrato tácito, em que eu entendo as
regras e você também, parece trazer paz de espírito a todos. Às vezes leio
textos que me tiram a paz, que não compreendo logo, que me soam como
histórias de terras distantes que nunca vou conhecer. Comprar a briga na
celebração desses contratos, aceitar que essas histórias são perfeitas mesmo
fora do padrão, é abraçar a autenticidade do autor. E entendo: tudo isso é
muito necessário, pois inspira o movimento de criação, os outros modos de
fazer.
Então sigo me questionando: será que para ser feliz é necessário lapidar tanto
nossas partes sinuosas? Tá assim, oooooooooo, de gente no mundo achando
que precisa! Mas tem também gente sensata ou disruptiva, ou meio louca, que
diz o contrário. Tive um professor que me ensinou que o Word não pode
mandar na formatação dos nossos textos. “Quando escrever, deixe as margens
e os limites para os municípios. Até eles são abstratos se você parar para
pensar.” Ainda não segui à risca o conselho, e numa primeira tentativa gostei
bastante do resultado.
Eu não busco a perfeição no que faço. Sei que a busca pela perfeição é o
Santo Graal da escrita, inalcançável, pois criada a partir de uma expectativa
ilusória. Busco meu autoaperfeiçoamento por meio de cursos e estudo,
enquanto tento não me frustrar no processo de dar vida a tanta gente que só
mora na minha cabeça. De resto, uso nos meus escritos o que aprendi na
arquitetura: minha marca se imprime ao texto a partir do ponto de vista do
observador para a linha do horizonte (e um cadinho de sarcasmo, só para não
passar em brancas nuvens).
Sem dicotomias nesse texto: perfeição e autenticidade.
Agora que compartilhei minha conclusão com você, adoraria ouvir a sua.

Arquiteta e Urbanista, criadora do blog Sabático Literário, do canal do YT Lendo de Tudo um Pouco e integrante do Coletivo Escreviventes. A Professora da Lua é seu primeiro livro infantil, disponível em e-book pela Amazon. Tem textos publicados em revistas e antologias. Seu perfil no IG traz resenhas de livros, filmes e pensamentos. Nascida em 1975, é carioca e vive com o marido, dois filhos e seu cãozinho Byron.
8 respostas em “Perfeição ou autenticidade?”
Querida amiga vascaína (sobretudo vascaína) eu sempre pensei que o aperfeiçoamento é necessário para alcançar a excelência, ainda que a perfeição seja inalcançável, pois o que nos move é o desafio. Mas, a cada grau alcançado o mérito fica para a próxima criação, pois o que está feito, está feito. É um atributo humano a vontade de voltar ao Paraíso.
Elaine, quando comecei a escrever era uma adolescente e na hora de decidir para que curso fazer vestibular, avisei logo que não faria Letras para não “corromper” ou “contaminar” meu jeito de escrever. Fiz Filosofia. Rsss. Escrevo com certa facilidade porque já me conheço. Mas leio muito outras e outros autores, não para comparar, mas para enxergar outras perspectivas. Entendo que o mergulho na nossa autenticidade é o caminho para a perfeição.
Crônica boa de pensar!
Obrigada! Um abraço!
Muito bom. Esses dias debatia a respeito dessa perfeição artística com minha mãe. Ela pinta telas e em um comentário disse que não pintava como determinada pessoa, pois os quadros da outra nem poderia se comparar aos dela. Eu a tranquilizei que arte realmente não se compara, pois cada artista é único e expressa suas vivências e percepções.
Claro que dentro de cada estilo e formato podemos nos aperfeiçoar, ainda que seguindo nossos próprios parâmetros.
Viva a autenticidade!
Entendi que o processo de aperfeiçoamento da voz literária, é como correr em uma pista de cerca alta. Há ainda uma fenda no centro dessa pista, onde você deve encaixar “suas rodas”. A cerca alta da lateral são o “horizonte de experimentação”, onde seu texto irá chocar ou provocar reflexões. Ou então estabelecer uma ruptura, uma quebra de paradigmas na cabeça do leitor ou do avaliador. A fenda, seria o “comum”. A depender do modo como suas rodas se encaixam nessa fenda, você soará mais poética, mais realista, mais polêmica, mais desvairada. O que importa, é que no horizonte da sua “linha de chegada”, você entenda duas coisas principais: não é uma corrida, mas há um adversário e é você mesma. Você nunca estará devidamente livre de se aperfeiçoar e a cada quilômetro percorrido, outro será adicionado para a linha de chegada. Porque o que importa, é o processo, não o prêmio.
Amei o texto, Elaine! Você traz inquietações que, de fato, passam pela cabeça da gente. Quem nunca teimou em manter um trecho como o original, mesmo depois de alguém dar pitaco? Hehe A gente pode buscar ao mesmo tempo o aperfeiçoamento e a autenticidade. 🥰
E vc não acha que um pouco de confusão salva a gente do tédio das coisas certinhas? Rsrs
Te entendo, viu? Tb busco me aperfeiçoar e, num momento de escrita livre, percebo que as regras já estão lá, como se fossem parte de mim.
Quando vc vai mandar suas crônicas pra EB? Aqui a gente faz uma escola incrível!
Abraços!
Oi, Elaine. Mandar as crônicas pra EB não depende apenas de mim. Depende de alguns fatores como a permissão da chefe do blog, por exemplo, ou esperar abrir para uma nova inscrição como o boêmio do Nelson Gonçalves.
Mas enquanto espero esta oportunidade , continuo comentando e lendo as suas crônicas e a dos companheiros e companheiras deste espaço porque acredito ser uma forma de aprendizagem que refletirá nas minhas próprias histórias.
E acredito que estou aprendendo a cada dia que passa e a cada crônica que leio uma nova peculiaridade, Elaine.
Um novo desafio. É o que sempre procuro na literatura.
Um grande abraço e até a próxima.
Muito bem, Elaine. Desafio dado é desafio aceito. (Adoro quando as crônicas terminam com a possibilidade de conclusões!!!)
Com relação a escrita, procuro sempre o aperfeiçoamento a cada treinamento literário que faço seja conto, crônica, artigo, ensaio, etc…
Mas não tenho a mínima ideia do que vai acontecer depois de realizar o sonho do livro, porque nunca imaginei poder chegar tão longe assim com o prazer de transformar minhas ideias em palavras, mesmo em dias de “caneta-de-pau” ou de “superestrela das letras”.
Eu considero-me mais como um andarilho das histórias que a cada lugar que vá e a cada rosto que encontra no caminho, sempre existe a possibilidade de virar um grande romance ou uma grande aventura.
Tudo isso se encaixa em regras, mandamentos, julgamentos e tribunais da vida. Sem isso a escrita fica bem mais confusa que o Oriente Médio.
A conclusão que chego é que sou mais verdadeiro nas palavras do que perfeito.
A autenticidade é o que me move.
É isso, Elaine. Um grande abraço e até a próxima.