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O que será que me salta aos olhos a me atraiçoar?


Dia desses, antes de sair de casa, estava ouvindo o majestoso MINAS de Milton Nascimento. Embora já nas ruas meus fones tocassem outro gênero em outro idioma, a letra de Trastevere ficou cravada em minha mente de um jeito curioso, como nunca antes. Por isso digo que mesmo eu não sabendo explicar sobre essas mudanças pessoais que fazem revoluções, fazendo vestir-me de outras variadas versões de mim, no plural mesmo, eu ainda as vivo. E felizmente escutar de novo um álbum é sempre uma coisa nova por isso. Aliás, creio que se eu ficasse imóvel durante sete dias, por exemplo, no dia em que completasse o sétimo e alguém ousasse me questionar como eu estava, eu não relataria nada além de que havia sentido de-ta-lha-da-men-te cada etapa das mudanças que haviam acontecido. Mesmo que nada aconteça, algo ainda acontece. Enfim, vou deixar um pedaço da composição para que possamos continuar:

A cidade é moderna, dizia o cego a seu filho/Os olhos cheios de terra, o bonde fora dos trilhos/A aventura começa no coração dos navios/Pensava o filho calado, pensava o filho ouvindo/Que a cidade é moderna, pensava o filho sorrindo/E era surdo e era mudo, mas que falava e ouvia.”

O instrumental trás uma ambientação de confusão que há nas cidades grandes como é a cidade de Roma onde fica o bairro Trastevere. É chamado de “joia”, um bairro conhecido pela história que o completa e a preservação da mesma, eu dei uma lida, nunca estive lá. O site cenciturismo.com.br que, com toda a gentileza, ainda está me oferecendo alguns cookies, diz: Quando se está em Trastevere, muitas vezes parece que o tempo, de fato, parou. E foi com o contraste dessa frase à composição de Milton que eu fiquei pensando em uma dramaturgia onde um pai cego cria uma cidade para um filho que, por ser mudo, não pode dizer a ele o contrário. Então, as ruas e as coisas passam a ter a visão do pai, a visão de quem não vê como é, mas como gostaria que fosse. Até mesmo para o filho já que o sentimento provocado pelas coisas pode ser transformado pela forma como você vê. E com essa ideia, rasguei minha cidade como se houvesse um pai cego e otimista agarrando meu punho.

Clódia me disse que nunca lia os trabalhos de Hans “porque, sabe liebchen, eu quero continuar viva, entende?”. Transcrevo-o para o meu leitor. Se quiser continuar vivo, pule este trecho.” – Hilda Hist.

Ao realizar a baldeação da linha amarela para a verde, estranhei o metrô sentido Vila Madalena estar parado na estação de portas abertas com todos já dentro, e então ao entrar, as faces cansadas me disseram que havia um atraso na linha. Não demorou muito, para mim na verdade, apenas alguns segundos até que ele saísse e eu descesse já que meu destino era a próxima estação, porém fazendo meu caminho de saída para a rua, pude ouvir a voz do tubo informando que a linha estava com atraso devido a presença de passageiro na via. Confesso que nunca havia ouvido a voz do tubo ser tão honesta, até mesmo a estação onde ocorreu foi informada. Minha perspectiva mudou. O pai soltou meu punho, desapareceu junto com a agitação colorida de turista que ele trazia. A minha missão do dia agora era ver a cidade, a vida, não como o pai cego queria, mas como o corpo que havia desvanecido na via veria se não tivesse morrido, precisava enxergar o que aqueles planetas no rosto do corpo desconhecido haviam perdido daquele instante em que perderam a luz em diante. Tudo do belo ao horroroso se tornou mais que curioso, se tornou recém-nascido bem aos meus olhos. O piscar de uma luz fraca que está prestes a queimar, o sorriso de uma idosa, o uivar do vento. Eu estava enlutada por alguém que eu sequer conheci ou conheceria, por alguém que representava o que sou enquanto vivia e lembrava-me de uma certeza agora que morria.

Quando cheguei na plataforma na volta, o metrô pontuou mais de dois minutos para a chegada do próximo. Eu ainda pensava no passageiro na via da ida. Humano sem nome. Com localização. Sem vida. Coloquei minha sacola no chão, entre meus pés, soltei o cabelo e consegui ouvir o tubo riscando, olhei para a TVzinha que agora mostrava 40 segundos até sua chegada. Fiquei incrédula com a rapidez que passou o tempo, eu fiz dois atos e envelheci mais ou menos um minuto e meio. Senti essa realização atravessar o peito, a realização de que piscar, respirar, pisar, pensar, tudo é tempo perdido vivido. Que estou vivendo, que não há ensaio, que não há pai cego otimista, que aquela luz vai queimar, que a idosa está envelhecendo também, assim como eu, e que o envelhecimento (mesmo quando não chega a sua capacidade extrema) precede a morte. Que o vento uiva antes de chover e que as chuvas de um aquecimento global podem ser fatais, principalmente em estados que não possuem estrutura para o descontrole de uma natureza que os humanos ainda não conhecem com 100% de certeza, mas que desconhecer não impede que eles cause a ela um desbalanceamento.

Eu estava com uma cólica que pontuava dolorosamente o fato de que eu ainda possuía uma corpo e não era um cérebro vagante-perguntante com as direções atravessadas, um bonde fora do trilho, quando vi alguém com o arroba do livro que foi minha melhor leitura do último ano, nadanovonofront, reclamar nas redes o fato da linha estar parada em horário de pico, mesmo ciente e inclusive citando o ocorrido. Outro alguém respondeu com Chico:

“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”

Uma resposta em “O que será que me salta aos olhos a me atraiçoar?”

Suas histórias são como viagens desconhecidas. Sempre tem uma surpresa esperando a cada esquina.

Tantas palavras que nascem através de uma simples música, ou até mesmo através de um dia comum que termina com um leve “atraso”, acabam num legado eterno.

Estas histórias que tu faz e vê, Vitória, acabam sendo um elixir contra todas as dores possíveis.

Até de enchente. Aliás, quero bancar o Cascão aqui. Nada de chuvas por um bom tempo.

Valeu pelo bom início de junho que me trouxe.

É isso. Um grande abraço e até a próxima.

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