Certo dia, me peguei a refletir sobre como tem coisas que, por mais que a sociedade evolua, continua a nos embaraçar. Uma delas é o assunto relacionado às necessidades fisiológicas.
Me recordo que desde a mais tenra infância, seja em casa ou fora dela, esse assunto e seus desdobramentos foram cercados de cochichos, mistério e tabu.
Quando ainda era bem pequena, tão pequena que ainda não conseguia me higienizar por conta própria, essa tarefa era incumbência de minha irmã oito anos mais velha que eu. Os irmãos mais velhos sofrem, coitados, sendo caçula, essas obrigações eu não tive. Atribuída essa responsabilidade à minha mana, toda vez que eu estava no banheiro, ouvia-se o brado ecoar pela casa e seus arredores:
— Buba…(era assim que eu a chamava), vem limpar meu c#!
Imagino o constrangimento de minha irmã com o eco dessas palavras por toda a vizinhança. Para evitar palavra tão pesada na boca de uma criança tão pequena. Meu pai me ensinou a substituir o palavrão horripilante por “zeca”.
Não demorou muito, lá estava eu de novo gritando:
— Vem limpar meu zeca!
Como existia algum vizinho com esse nome, para evitar qualquer confusão, meu pai me chamou de canto novamente e acrescentou “de bronze” à frase, dissipando qualquer mal-entendido que pudesse causar aos Zecas que estivessem por perto. Daquele momento em diante, todos em casa batizaram o pequeno e malfadado órgão, que vulgarmente é tratado como um palavrão de apenas duas letras, pela frase “zeca de bronze”. Essa pequena mudança semântica, causou uma enorme diferença, evitando o constrangimento dos demais membros da família toda vez que eu estava no banheiro.
Mas, como eu ia dizendo, por mais que a sociedade evolua, assuntos relacionados a coisas tão banais, tão comuns a todos os seres humanos, causam e parece que sempre causarão, desconforto e constrangimento quando trazidos à tona.
Não faz sentido, uma vez que esse alivio já foi considerado uma das sensações mais prazerosas entre as práticas essenciais ao ser humano. Deve ser por tratar-se de uma prática primitiva, e até um tanto grotesca, que acaba por nivelar ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, humanos e animais.
Contudo, o constrangimento causado pela publicidade desse ato não se restringe apenas ao ser humano. Quem nunca viu um gato quando está em vias de se aliviar? O bichano fica todo sisudo, olhando para os dois lados, agoniado, tentando se esconder. Então, quando não é possível esconder-se, ele dominado pela necessidade se rende à caixa de areia exposta em algum canto da casa. A orelha fica inteiriçada, e seu olhar, sua expressão torna-se no mínimo cômica. Imagino que em seu íntimo ele pense: “Ai como pode um ser superior como eu, fazer algo tão repulsivo e ainda na presença de alguém tão indigno quanto esse humano que insiste em me olhar.”
Depois quando o trabalho está concluído, de maneira ágil e não menos vexatória, o felino cobre tudo com areia, para que sua vergonha não permaneça exposta. O ato e seu objeto são tão degradantes que quando queremos classificar alguém muito vil e ordinário, dizemos com toda a convicção “aquele sujeito não vale o que o gato enterra”.

Nasceu em Itarantim, Bahia. Reside em Vitória da Conquista. É bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, licenciada em Letras/Inglês e Filosofia. Especialista em Direito do Trabalho, Violência contra a Mulher e Docência no Ensino Superior. É poetisa e escritora. Possui o título de Doutora Honoris Causa em Literatura outorgado pela Academia de Letras do Brasil-SP, onde ocupa a cadeira 38. É colunista da Revista Escribas. Autora de “O Reflexo atual da subjugação feminina” entre outros livros de poesias e contos, participa em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Ama correr, costurar, pintar, fazer pão, ver bons filmes e ler nas horas vagas. Orgulha-se em ser mãe e avó.
6 respostas em “O que o gato enterra”
Incrível reflexão sobre um aspecto trivial do ser que se alimenta e se constrange diante de um ato mais que natural, afinal o corpo só retém o que interessa. Fantástico, Chirles, excelente texto.
Uma reflexão bem interessante, Chirles.
A defecada é a única coisa que nivela todo mundo, seja humano ou animal.
O problema é que muita gente acha um nojo esse negócio da velha e boa c… que é natural e que nos acompanhará até o fim do ciclo de vida.
Gostei desta última frase da crônica. A parte de não valer nem o que o gato enterra.
E o interessante é que a merda nossa virou significado importante: “Isso vai dar merda”, “Você só faz merda”, “Não vale nem a merda que o cachorro come”, essas coisas todas.
Uma crônica boa pra ler em uma noite gelada pra caramba.
É isso. Um grande abraço e até a próxima.
Corajoso escrever sobre o tema.
Nunca tinha ouvido essa expressão, Chirles! Muito boa, vou passar a usar rsrs.
Abs,
Carina
Chirles, adorei a citação no final do texto, confesso que não a conhecia, mas agora vou adotá-la.
Aliás, a crônica inteira vale ser lida e relida. Muito boa.
Parabéns, boa reflexão!