Encostei o carro e dei uma pausa na viagem. Precisava ver o fim da partida. Era a quarta e última do desempate entre o GM (Grande Mestre) russo Ian Nepomniachtchi e o GM chinês Ding Liren pelo título mundial de xadrez (sim, xadrez. Eh, eu sei… mas, por favor, não vá embora ainda). Após 14 partidas no ritmo clássico, empate – um 7×7 com 3 vitórias para cada e 8 empates1. No domingo, 30/04/2023, acordei às 6h da manhã para ver os desempates2. Fui acompanhando os jogos e os comentários enquanto escovava os dentes, trocava de roupas e ajudava – bem pouquinho – a Carol com nossas coisas para a viagem até Guaxupé/MG. No meio do caminho, tudo ia bem – na estrada e no tabuleiro. Até que… Ding Liren recusou o empate, cravando sua própria torre e deixando claro que queria ir até o fim! Conduziu bem seus dois peões passados na ala da dama, manobrou com acuidade3 as poucas peças restantes, defendeu bem seu rei e… o russo abandonou!!
O gesto de rendição no xadrez é um dos mais nobres nos “esportes”4. O perdedor estende a mão para um cumprimento, em respeito e reconhecimento5. Ian estende a mão. Ding responde ao gesto. Imediatamente após, deixa seu braço direito cair sobre o tabuleiro, estático. O chinês curva a cabeça, cobre o rosto com a outra mão. Vê seu adversário se aproximar e agora é ele, Ding, quem estende a mão, um último cumprimento depois da última batalha na guerra iniciada 21 dias atrás. Ding fica por longos segundos parado, respirando fundo, olhos fechados, espasmando as mãos como quem pensa em tudo que o levou até ali, como quem não acredita. Parece chorar. Ele acaba de se tornar o campeão do mundo. Na entrevista coletiva, disse:
“Eu acho que esse match reflete o mais profundo da minha alma”
Essa frase me acompanhou desde então. Antes, Ding fez meio que uma retrospectiva da sua trajetória. Lembrou que começou a estudar com 4 anos de idade e que passou os outros 26 de sua vida jogando, analisando, tentando melhorar suas habilidades no xadrez com diferentes métodos. “Eu acho que fiz quase tudo”. No meio da resposta, ele confessa: “algumas vezes eu pensei em abdicar do xadrez [uma risadinha, meio que percebendo a ironia da lembrança], porque os resultados em alguns torneios não foram bons, e, algumas vezes, eu lutei para encontrar hobbies que me fizessem feliz”…
Eu torci pro Ding nesse mundial. Não sei bem explicar o porquê. Há algo de empatia natural pela sua figura. Ele parece um ser frágil e inofensivo. Suas respostas são muitas vezes timidamente lacônicas e seguidas de uma olhadela acanhada para a mediadora. Ele mesmo revelou ser alguém bem sentimental e que às vezes se deixa levar pelas emoções. Isso ficou claro nos 2 primeiros jogos do match. Perdeu o segundo. Depois empatou. Perdeu outro, empatou. Mais outro… nunca esteve à frente do placar. A não ser ao fim da última partida.
Dias depois, era possível achar algumas matérias a respeito do campeão nos principais periódicos tupiniquins. Mas o país do futebol não liga para muita coisa além do futebol. As matérias eram horríveis. Uma delas dizia uma porrada de bobagens6. E ninguém falou do que mais importava – para mim, pelo menos. Por pouco, Ding não desistiu. Precisou “lutar para encontrar hobbies que o fizessem feliz”. E, enfim, parece ter encontrado, ao fim do duro trabalho de uma vida, uma felicidade mais duradoura que a de um hobbie. Uma felicidade que durará pelo menos até o próximo match, quando defenderá a coroa.
Afinal, é por isso que pessoas jogam xadrez, não?! Ou futebol; ou cozinham, viram médicos, advogados… Para serem felizes. Talvez seja por isso que alguns escrevam – sobre viagens, placas de carros, manhãs e até xadrez. Talvez porque seja isso que reflita “o mais profundo de sua alma”.
NOTAS
1 No xadrez, empates são muito comuns. Aliás, o campeonato de que fala o texto teve como uma de suas marcas inusitadas o número altíssimo de partidas com vitórias – mais de 40% das partidas. A título de comparação, o último match pelo título mundial (em 2021) teve metade do número de vitórias; o match anterior contou com 12 empates em 12 partidas.
2 Se você leu minha última crônica (não leu? Que tal ler aqui!), eu sei que me terá por “hipócrita” agora. E o que é que eu vou dizer?!
3 Dia desses minha esposa estava jogando palavras cruzadas e mencionou “acuidade”. Palavra bonita, não?! Eu acho.
4 Oficialmente, o xadrez, assim como o pôquer, é considerado um “esporte da mente” – até criaram uma associação internacional em 2005 (a IMSA, International Mind Sports Association) para regulamentar isso aí. Mas, na boa, eu não acho esporte, não (não dá tempo de entrar nesse papo, e você não quereria ler a respeito).
5 Se você viu a série “Gambito da Rainha”, sabe que também é possível derrubar o rei. Eu não sei muito sobre isso. Mas atualmente, o gesto padrão é o cumprimento com as mãos.
6 Que eu fico me coçando para dizer qual é!!

Paulista, formado em Economia, trabalha como escrevente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mora atualmente em Uberlândia/MG com Carolina, sua esposa. Começou a escrever tardiamente, por volta de 2018. Desde então, tem escrito mais a cada ano. Publicou contos, crônicas e poesias em antologias diversas.
3 respostas em “Lição de uma partida de xadrez”
Que escrita fluida e agradável ! A escolha das palavras foi precisa. Texto carregado de informações úteis para quem não domina o xadrez, como eu.
Que delícia de crônica!
Muito legal tua crônica. Talvez eu escrevendo literatura ou fazendo pesquisas em jornais seja minha felicidade refletindo no mais profundo da minha alma. Eu gostava mais do xadrez na época áurea do Kasparov contra o Karpov. Aquilo era mais do que um jogo. Era uma história a ser contada.
Quanto aos nossos queridos jornais, sem comentários. Um abraço.