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crônica

“Gostaram da pizza?”

O homem com jeito de dono chegou, educado, e mandou:

— Gostaram da pizza?

Eu passava constantemente pelo estabelecimento da esquina e dizia à esposa: precisamos vir aqui um dia. É perto de casa, o que enseja uma inusual saída a pé, permite explorar melhor o bairro; além do mais, o local tem uma fachada simpática e um nome convidativo. Quem vai imaginar que uma pizzaria com nome italiano faz pizza ruim?

Eis que o dia chegou. Quer dizer, a noite. De sexta-feira. Saímos de casa, braços dados, conversando, a esposa com a sombrinha. Sorríamos. Uma garoa fina nos acompanhou de casa até o destino. Adentramos, enfim, a almejada porta. Como são doces as pequenas conquistas.

E efêmeras.

O lugar cheirava a produto de limpeza de banheiro. Ok, ok: o banheiro estar limpinho é bom, mas o ideal não seria descobri-lo só ao entrar no toilet?

— Gostaram da pizza?

Cardápio curto, check. Sabores tradicionais, check. Seguimos o manual das primeiras visitas: calabresa e marguerita, o benchmark de qualquer pizzaria1. Preço bom, atendente atenciosa. As coisas iam melhorando. Mas enquanto esperávamos, um cheiro de esgoto. Da rua? Da cozinha? Mas o azeite tinha aquele selo de origem na tampa: português! Mas e o recipiente com maionese e catchup? Ah, mas disso não se pode acusá-los: são filhos das Minas Gerais, está no sangue — vermelho como catchup.

A pizza chegou. Bonita, bem apresentada, cada uma em uma tabuinha de madeira clara. Eis então o ponto ao qual toda essa história, esse desejo antigo, esse sonho simples de poder se orgulhar de uma boa pizzaria perto de casa culmina: provamos.

Mais cedo, naquela tarde, eu e uns amigos debatemos sobre o significado da mentira. “Mentira é mentira”, advogavam uns. “Espera lá! Então é moralmente errado faltar com a verdade com o fim de fazer uma surpresa para o cônjuge?”, perguntava retoricamente um outro. Ainda há os que tentam um meio termo: “sim, mentir é errado, mas há erros maiores e menores”. Alguém cita o nono mandamento; outro, o dilema ético de mentir para um agente da SS sobre ter alguém escondido no porão (dilema ético? Sério?).

Mal sabia eu que aquela conversa, e o diploma de Teologia, e a educação que recebi dos meus pais, e toda a reflexão dos filósofos desde 28 de maio de 585 a.C., tudo isso era um prólogo àquela pergunta, a maldita pergunta do homem com jeito de dono:

— Gostaram da pizza?

Se gostamos? Bom… Eram basicamente pizzas de queijo, com gosto de queijo. Só (e queijo ruim, insiste minha esposa). Não senti o gosto da calabresa, a marguerita não tinha molho suficiente. Uma cebola roxa dava um toque a mais na primeira, mas era isso e… Só.

A pergunta foi feita com educação, é bom que se diga.

— Gostaram da pizza?

E foi feita uma única vez, direta, decisiva.

— Gostaram da pizza?

Mas, cá entre nós, quem foi o gênio que inventou esse tipo de questionário? Não funciona. E quem os faz não quer saber a verdade. Ah, mas não quer mesmo! Quer o elogio. Não aguentaria um pedaço, uma lasca da verdade nua e crua soerguida ante si!

— Gostaram da pizza?

Fraquejei:

— Gostamos… Sim… Boa…

Um leve e momentâneo peso de consciência pousou sobre mim.

Não quisemos nem experimentar a pizza doce, nem comprar um chocolate. Saindo dali, fomos afogar as mágoas na sorveteria da outra esquina…

… horrível.


Notas:

  1. Preciso agradecer ao Arthur (sem grandes alardes) pela apropriação do termo financeiro no contexto gastronômico. Ornou. ↩︎

12 respostas em ““Gostaram da pizza?””

Adorei o enredo Misael!
Eu passei por algo bem semelhante na lua de mel, meu esposo foi como voce na resposta, gentil nas palavras. Continue escrevendo, você é muito bom, parabéns.

Ha, ha , que situação !
Literalmente entre a cruz e a espada kkk.
Espero que o sorvete tenha salvado o programa 😁

Salvou nada, Li. Como dito ali na última linha da crônica (talvez tenha ficado ambíguo; desculpe), estava “horrível”. Foi uma noite de sexta-feira traumática. Mas escritores precisam de traumas, então está tudo bem hahahah. Obrigado pela leitura e comentário. Abração!

Hahaha!
Fiquei na dúvida se algumas fatias acabaram tendo sabor de veja x14 ou Omo por causa do banheiro.
Espero que seu sistema digestivo já tenha superado!

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