Sou muito observadora. Não tenho ouvido absoluto, mas creio que escuto bem. Sou o tipo de pessoa que sabe ouvir, paro para ouvir.
A oralidade, permanentemente, mutante da nossa língua portuguesa desafia a minha capacidade de apreender e acompanhar a dinâmica, em tempo real, do nascimento, vida e morte de certas palavras que se tornam as queridinhas do momento no vocabulário cotidiano.
O verbo Entregar, de uma hora para outra, passou a substituir outros verbos que, a meu ver, cumpriam bem a sua função. Posso dar um ou dois exemplos: Ao invés de “… no seu mais recente trabalho, ela ‘entrega’ uma obra…”; “Hoje em dia, com as redes sociais, é mais fácil ‘entregar’ uma imagem…”. Notem que o verbo entregar, assume o lugar dos antigos verbos mais comumente usados, tais como Oferecer, Criar e, em alguns casos, até assumem o lugar dos verbos Fazer, Dar, Fornecer, Promover.
Entregar, é um verbo transitivo direto e indireto. Significa passar para as mãos de alguém; dar algo a alguém. O verbo ‘Oferecer’ é transitivo direto e indireto ao mesmo tempo também, pois quem oferece, oferece alguma coisa a alguém, alguém poderia dizer, em defesa do verbo entregar que ele tem a vantagem de encurtar o caminho, uma vez que os outros verbos citados e tradicionalmente mais usados, dependem do que só consigo chamar de duração, ou seja, temporalidade das coisas.
Por mais que eu tente identificar o momento em que entregar virou um verbo adjetivo, na medida em que parece ter parentesco com o ‘politicamente correto’… Parece que ao dizer ‘entregar’, ao invés de dar ou oferecer, o gesto ganha um status novo, positivamente elevado.
Eu tenho cá minhas dúvidas… Desde 2020, com a pandemia da Covid-19, perdemos tanto, sofremos, tanto que, nos anos seguinte, 2021 e 2022, aceleramos ainda mais nosso cotidiano. Parece que o viver ficou mais urgente. Não dá mais tempo de, com calma, fazer, criar, promover, oferecer. Não dá tempo! Então para que mentir? Importa, tão somente entregar, seja o que for, do jeito que der, sem perguntas. Uma estratégia de seguir adiante evitando lidar com tudo o que envolve tempo, dedicação, calma. Desculpe, mas, nada a ver! Vamos entregar, isso é que importa!
Mas, entregar o que? Como? A quem? Essa palavra bonita caiu como luva na vida de muita gente por aí, afinal, estamos muito ocupados e ansiosos preenchendo os vazios do viver para nos fazer estas e outras perguntas.

NADIA VIRGINIA BARBOSA CARNEIRO é baiana da Cidade Baixa de Salvador, licenciada em Filosofia pela UFBA, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora universitária há 30 anos, tendo atuado na UFBA, UEFS e desde 2015, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia, Campus I Salvador, nas áreas de Filosofia, Metodologia da Pesquisa, Oficina de Linguagem audiovisual e Estética da Comunicação para o curso de graduação em Relações Públicas. Já publiquei mais de uma dúzia de livros de poemas, participei de coletâneas diversas e caminho para o terceiro livro de crônicas.
Universos de interesse: Arte, Cidade, Imagem, Fotografia, Literatura, Poéticas e imaginário urbanos.
12 respostas em “Entregar”
Errata do meu comentário anterior: onde se lê “deliver” seguido de “sobre”, leia-se “deliver” seguido de “about”.
Acho chatíssimo esse uso de “entregar”, que, aliás, nem dicionarizado está. Será que em breve estará? Cada vez que escuto “entregar” nos sentidos que você mencionou, inclusive, de “gerar”, “proporcionar”, “produzir”, meus ouvidos se assustam com a intrusão, como se eu escutasse uma melodia com uma nota desafinada. Que bizarro! Isso veio de traduções de “deliver” em textos em inglês. E como essa moda pega, não é? Assim como o “sobre” 🙄, substituindo o “trata-se de”, “não se trata de”, “é questão de” etc. Não é sobre 🙄 mudanças inevitáveis que ocorrem na língua, é sobre 🙄 as esquisitisses que o falante nativo entrega 🙄: parece gringo traduzindo literalmente “deliver” e “sobre” porque desconhece português idiomático. É sobre 🙄 isso.
As cicatrizes que a pandemia deixou ainda perduram no subconsciente das sociedades, realmente, oferecer e entregar se tornaram atos de coragem e cada vez mais raros.
Isso mesmo. Implica verdade e generosidade no dizer e no agir. Não pode ser banalizado com se fosse um vício de linguagem vazio e irrefletido. Obrigada pelo seu comentário.
Vejo como a normalização da entrega de algo que faz sentido para alguém em algum lugar, mas talvez sem sentido nenhum ao fazer uma minima reflexão do sentido dessa entrega para o cada um (o sujeito ativo especificamente).
Em cada “Entrega”…Ao entregar algo, não estamos entregando um pouco de nós? Vale a pena? Pra quem?
Obrigado pela proposta de reflexão através da belissima crônica.
Muito bem pontuado. Há uma responsabilidade, mesmo inconsciente, naquilo que falamos, sentimos e no agir também. As palavras precisam encarnar o seu sentido. Obrigada por pensar junto comigo.
Consigo identificar a pontinha de humor, em “quase ” todas as suas crônicas… frequentemente me pego rindo discretamente, imaginando vc falando sobre o que escreve.
Verdade! A minha escrita precisa de uma “entrega” verdadeira. Me divirto muito escrevendo. Cada escrita reclama sentimentos diferentes. às vezes, também choro. Obrigada!!
A pandemia nos fez “andar” devagar, mas não nos acostumamos, preferimos a agitação rotineira, muita pressa e pouca observação.
Obrigada pelo seu comentário. O “Entregar”, muitas vezes, se torna um gesto vazio em todos os sentido…
Uma crônica pra, com o perdão do trocadilho, entregar alegria pros que sofrem, dúvidas pros que tinham certeza de tudo e principalmente oferecer o debate pra quem quiser comentar como eu, por exemplo.
Eu só tenho apenas a oferecer minha opinião que pra 98, quase 99% das pessoas não fará nenhuma diferença na vida derlas.
E também meus comentários por vezes oportunos, por vezes pensativos e por outras vezes entediante dependendo do tema.
Cada um de nós pode entregar o que puder teoricamente sem pressa, mas na prática é outra história.
Por ora, é isso que posso te entregar.
Até mais.
Gosto dos seus comentários. Você não economiza tempo dedicado a leitura dos seus colegas cronista e, ainda nos brinda com seus comentários reflexivos.
Nesta crônica eu quis marcar a observação do repentino uso preferencial da palavra/verbo “entregar”, que contamina o discurso geral e vira vício de linguagem. Tem uma pontinha de humor na crônica…