Podemos ser felizes sem os outros?
“Nem muito perto. Nem muito distante. É como duas pessoas precisam ficar uma da outra”, li em voz alta. Explico: temos muito a aprender com a fábula do porco-espinho, de Arthur Schopenhauer. No inverno rigoroso, para aplacar o frio, os porcos-espinhos tiveram a ideia de se aproximar. Ficaram aquecidos, todavia se machucaram mutuamente. Então, voltaram a se afastar. Mas isto cedeu lugar ao frio. A solução? Leve aproximação. Entrega e autonomia. União e a distância.
Seria esta a “fórmula” da convivência harmônica ideal? Dar um espaço ao outro, porém não se afastar tanto a ponto de ele congelar de saudade. Entender que ele é sempre outro ser humano, cheio de distância, dores e mistério, ainda que o conheçamos há 20 primaveras. Ouvir Stendhal e dar um passo atrás diante da flor à beira do precipício. Só que saber sobre o perigo não nos blinda dele: “E a consciência da insanidade do amor nunca salvou ninguém da doença”, como declarou o escritor Alain de Botton.
Definitivamente não é de hoje nossa sede de conexão. Há 200 mil anos, fazer parte de um grupo rendia vantagens de sobrevivência, conferindo segurança e proteção. Estar junto, muitas vezes, define o “estar bem”. Conforme a teoria do apego, os relacionamentos íntimos são uma necessidade impressa em nossa genética: somos programados para con-viver. No século XVII, o filósofo Baruch Espinosa alertou: “Toda felicidade ou infelicidade depende unicamente da qualidade do objeto ao qual aderimos por amor”.
No isolamento social imposto pela covid-19, tivemos esse duplo movimento: intensa aproximação aos nossos afetos mais íntimos, por vezes resultando em ferimentos pela hiperconvivência, e afastamento dos distantes, esfriando muitas relações de amizade, trabalho, coleguismo. De fato, evidenciou-se ainda mais o ciclo deprimente da incompreensão mútua. Não é à toa que, conforme o Colégio Notarial, os cartórios registraram número recorde de divórcios em 2021.
Em um de seus artigos, o historiador israelense Yuval Noah Harari previu que a crise global da pandemia não traria efeitos de longo prazo em nossos instintos humanos mais elementares. Ainda (e sempre) precisaremos de contato, real, para valer, não na tela. No olho. Somos animais sociais e precisaremos de contato físico, independentemente do que as tecnologias nos proporcionarem. Isto é, ainda e sempre sentiremos frio. A loucura da existência, dessa viagem que chamamos de vida, pede companhia. Pede alguém com quem fruir a melancolia de fim de tarde dominical.
“Toda crise é também uma oportunidade”, ressalta Harari, em um dos breves momentos de otimismo. No caso da nossa convivência diária, talvez o afastamento forçado da pandemia deixe como legado a longo prazo a aproximação e o lembrete de que o frio sempre vem. Uma oportunidade de olhar com mais cuidado para o lado? De aquecer os momentos em comum? Talvez.
Podemos ser felizes sem os outros? Podemos. Mas a questão é: queremos uma vida assim? A implacável solidão está sempre à espreita: nascemos e morremos sozinhos. Se a psicóloga Brené Brown estiver certa, são os vínculos que dão sentido e propósito à vida humana.
Os espinhos do outro podem até, vez ou outra, ferir. Só que um abraço de esperança e calor em pleno inverno existencial, sem medo, vale o risco….

Nasceu em Caxias do Sul-RS, em 1985. Formada em Letras, com Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade, tornou-se professora de produção textual, atividade que preenche seus dias há mais de 15 anos. Todavia, no oco da pandemia, no desespero do cotidiano confinado, resolveu-se escritora.
Uma resposta em “Em pleno inverno existencial”
Relacionamentos são sempre complicados seja quais forem e para alguns como eu, o contato físico é mais complicado devido a ter hipersensibilidade ao toque mais ou menos como o porco-espinho que citasse na crônica.
Mas tanto a aproximação quanto a distância são coisas que a gente precisa manobrar-se pra não se machucar.
É isso. Até a próxima.