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Dias Úteis

Sonhar com o trabalho era ceder uma parte da vida que não estava no contrato. Seria o caso de pedir adicional noturno? O pessoal do RH certamente alegaria imprecisão nos cálculos: “Não temos como computar a quantidade de horas que você passou sonhando com o trabalho.” Eles sempre têm um argumento impossível.

Nunca consegui fazer tudo sempre igual, como as musas da MPB. Havia dias em que eu passava primeiro o café, em outros ia direto para o banheiro. Ainda havia aqueles dias úteis em que eu ficava na cama fitando o teto, olhando para o nada, como se diz.

O nada geralmente é algum ponto dentro de nós, pois, quando os olhos ficam vidrados e a visão turva, é para lá que estamos olhando. O que está fora perde o contorno e a nitidez. Há sempre um nível de introspecção onde todos somos míopes.

Mas, enfim, vinha a parte do “tudo sempre igual”: ônibus, trânsito, calor, suor, fila do elevador, elevador, primeiro sopro de ar frio, corredores, cumprimentos infinitos – “Bom dia, como vai?”, “Bom dia, tudo bem?” – café preto ruim. Sento-me à cadeira e, nove horas depois, levanto-me para ir embora.

Na noite em que sonhei com o meu patrão, acordei e fui direto lavar a louça do dia anterior. Enquanto lavava, perguntei-me se a moça do caixa que trabalha no mercado da esquina era mais feliz do que eu. Convenci-me de que não. Ela devia receber um quarto do que eu recebo, portanto, deveria ter um quarto da felicidade que tenho. Um quarto, um quarto dessa merda toda. E ela ainda consegue ser simpática. Parece feliz, aquela filha da puta.

Na manhã em que a primeira coisa que fiz foi tomar banho, havia tido um sonho erótico com a senhora da recepção do prédio em que trabalho. Ela deve ter idade para ser minha avó. Nesse dia, disfarcei meu constrangimento com uma dose de mau humor e não cumprimentei ninguém. Passei o dia de fones, às vezes tocando música, às vezes não.

Quando faltavam trinta minutos para encerrar o meu expediente, fui chamado à sala do chefe. Ele me pediu para organizar uns arquivos para uma reunião no dia seguinte, pela manhã. Fiquei até mais tarde nesse fatídico dia e, na volta para casa, lembrei de comprar papel higiênico. Na esquina de casa, percebi que o mercado estava prestes a fechar. Corri e consegui comprar papel, mas a menina simpática do caixa não estava mais lá. Pelo menos ela largou mais cedo do que eu, pensei.

Já na calçada, percebi, a certa distância, a menina do caixa subindo na garupa de uma moto, provavelmente do namorado.

Na manhã seguinte: despertador, café, pão dormido, banho. Saí tão apressado que esqueci de escovar os dentes. Passei no mesmo mercado e comprei uma pastilha para disfarçar o hálito de café. No intervalo do almoço, lembrei que havia sonhado que estava na praça de alimentação do shopping. No sonho, percebi que o ar-condicionado do shopping não era tão frio quanto o do trabalho e alegrei-me com a minha humanidade, como um eremita que consegue distinguir o canto de várias aves.

Findo o intervalo do almoço, meu chefe me chamou para dizer que a reunião da manhã havia sido adiada porque os arquivos que eu organizara no dia anterior estavam trocados. Fiquei em pé, parado em frente à mesa do chefe por alguns segundos que mais pareceram horas. Não sabia que palavras usar.

Nesse momento, senti uma gota de suor escorrendo da minha nuca até as nádegas. Concentrei-me no percurso da gota descendo pelas minhas costas e, quando não pude mais distinguir o local exato em que ela estava, falei:

— Mil perdões, chefe. Eu vou refazer agora mesmo os arquivos.

E saí.

Na sexta-feira, cheguei ao trabalho ainda com a sensação maravilhosa da última noite: sonhei que estava de férias. No trabalho, fui demitido no primeiro horário da manhã. Pelo menos não ia precisar passar o resto do dia trabalhando. No caminho de volta para casa, vi como a cidade fervia durante as horas em que eu ficava trancado naquele escritório.

Sem planos para o dia livre, fui ao mercado e comprei três garrafas de vinho barato. A moça do caixa não estava lá. Além de sair mais cedo, ela ainda tinha folgas durante a semana. Com certeza era mais feliz do que eu.

Não importava. Cheguei em casa e bebi até pegar no sono. Acho que não sonhei com nada. Acordei ainda bêbado e já era sábado. Liguei a TV e vi que a moça do caixa estava morta. Havia sido assassinada pelo namorado. Seu corpo foi achado em uma cova rasa no meio de uma mata.

É mais comum do que parece.

Fui até a janela. Apesar da ressaca, notei que fazia um belo dia, ideal para começar uma vida nova.

2 respostas em “Dias Úteis”

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