Durante minha vida sempre tive uma espécie de imã para atrair gente louca.
Se fosse enumerar as pessoas que me cercam somadas as que vão se aproximando de mim a cada dia, acredito que daria para formar um hospício inteiro, incluindo os profissionais que atuam na área (cá entre nós, também não devem ser muito normais, porque todo mundo sabe que loucura é contagiosa). Daí surgiu minha necessidade em fazer este espaço, para extravasar um pouco toda esta loucura que tenho contato constantemente.
Desde muito nova, fui rotulada como louca, anormal, fora da caixa. Talvez por nunca haver aceitado em casa que os homens deveriam ser servidos primeiro e com as melhores porções, sendo que eram as mulheres que preparavam as refeições. Nunca aceitei também que apenas as mulheres, ainda que muito novas deveriam limpar toda a casa sozinha, enquanto aos homens era permitido o luxo de se entregarem ao ócio. Eu não me refiro ao meu pai, ele não. Entendo que em uma estrutura familiar comum existe o provedor e o cuidador. Desde criança, independente do contexto social que estava inserida, compreendia a importância de respeitar essa regra universal, mas compreendia também, apesar de não ter recebido orientação a esse respeito, que deveriam respeitar essa regra independente do sexo ou gênero do provedor. Quem mantêm toda a estrutura, merece usufruir com um pouco mais de conforto.
Mas enfim, quem era eu para argumentar qualquer coisa. Argumentar… descobri o significado dessa palavra aos trinta anos ao ingressar na universidade. Em casa, sendo mulher, na década de oitenta, me restava calar, aceitar e obedecer, afinal, para isso nasciam as mulheres. Bem, isso foi o que tentaram me ensinar ao me doutrinarem, mas esqueceram que eu era a louca que vivia em seu próprio mundo de loucura. Então, não tinha obrigação alguma de acatar, aceitar, nem tampouco obedecer a essa imposição estapafúrdia.
Se quando criança eu já era considerada louca, na adolescência a loucura só aumentou. Não entrava em minha cabeça por que aos meninos era dada total liberdade para namorar e eu deveria manter o recato. Não se tratava de se preservar, esperar a hora certa, que tem o tempo certo para todas as coisas debaixo do céu, e essa conversa toda. Isso, ainda com toda loucura eu conseguia compreender. O que eu não entendia era, porque eu por ser menina precisava manter o recato, mas meus irmãos (homens) eram incentivados a conseguir mais e mais garotas, que também eram meninas e que certamente suas famílias também as orientavam a manter o recato. Talvez fosse algo simples de compreender, mas para minha cabeça louca, era complexo demais.
Por não me adequar as regras impostas, e por ser louca, me incentivaram a trabalhar, mesmo ainda adolescente. Eu concordei e fiquei até animada, sempre desejei ter uma renda, comprar coisas que meus pais não poderiam custear. Estava ótimo para mim.
Meu primeiro ofício foi o de babá. Porém, o termo babá era apenas um engodo para não dizer que eu teria que fazer tudo na casa, e ainda, cuidar das crianças. Mas até aí, tudo bem, já estava acostumada, e ainda sendo paga, fazia tudo da melhor forma que minha meninice e loucura permitiam. Entretanto, não durou muito e logo fui dispensada, afinal, não me informaram de outra regra que parecia universal, que o empregado deveria fazer o almoço, convidar os patrões para comer e caso eles não quisessem naquele momento, estivessem sem fome ou algo do tipo, o funcionário (aquele mesmo que preparou o alimento) deveria ir cuidar de seus deveres, ainda que com fome, até depois que os patrões se servissem, isto é, se sobrasse. Aí eu realmente fui à loucura. Como poderia adivinhar algo desse tipo, sendo que nunca havia trabalhado na casa de ninguém. Mas enfim, com minha loucura e desatenção dei o motivo ideal para os familiares, amorosos que eram, zombarem de mim por uma vida.
— Olha lá, a doida que preparou o almoço e comeu antes do patrão.
Sobrevivi a isso também, por mais que ser ridicularizada por pensar de forma lógica fosse algo que me tirasse do sério.
Outra coisa que nunca entrou em minha cabeça até os dias de hoje. A cultura repulsiva das pessoas zombarem de tudo, fazer supostas brincadeiras ofensivas, racistas, machistas, homofóbicas e o ofendido tem que rir, enquanto serve de deleite ao humor tóxico do outro, ou então, é tachado com os piores adjetivos que encontram. Se ser normal for enxergar diversão nesse tipo de coisa, cada dia me orgulho mais em ser a louca.
Enfim, esse foi apenas um pequeno apanhado de algumas das minhas loucuras. Contudo, essas coisas ocorreram lá no início da vida, de lá para cá, foi só ladeira abaixo. Pois, se eu já era considerada louca por discordar com toda minha ignorância juvenil, é possível imaginar os desafios que tive que encarar no decorrer da fase adulta. Não me enquadrar nos padrões pré-estabelecidos socialmente sempre foi o principal motivo para esse cruel diagnóstico.
Entretanto, ao refletir sobre minha vida, me orgulho da louca que sou. Às vezes me impressiono com os demais loucos que atraio ao meu redor. Estes sim, eu classificaria como loucos, mas quem sou para questionar a sanidade alheia.
Tantas pessoas infelizes mantendo casamento de fachada, sabe-se lá o motivo por trás dessas decisões. Políticos e celebridade que precisam manter a aparência. Mulheres desesperadas por casamento, como se disso dependesse seu respirar. Outras que penam para sustentar a casa sozinha, difamam o marido, mas preferem continuar vivendo, presa ao pesado ditame da sociedade que o homem é o rei e a mulher, seu mero lacaio.
Tem esposa que aceita dividir seu esposo com a outra debaixo do mesmo teto, em cima da mesma cama. Tenso. E não se trata de suruba ou poliamor, nada disso (nesses casos nem seria grande novidade). Mas sim, aceitar essas práticas enquanto ostenta a falsa virtude da boa família cristã, submissa, calada e honrada. Vai entender, a cabeça dos loucos tem razões que a própria loucura desconhece.
Outras pessoas vivem a amaldiçoar sua vida e suas relações por uma vida inteira, sem mover um pé para mudar sua condição. Só lamento, angústia e reclamação, buscando a felicidade em algo distante, terceirizando suas decisões como se por um passe de mágica algo fosse mudar e sua vida enfadonha e tediosa se transformasse em um conto com final feliz.
Por fim, como dizia o antigo ditado “de médico e louco todos temos um pouco”. Assim, sigo minha vida, uma louca cercada de loucos, cada um com sua loucura e cada louco com sua mania. Não os julgo. Cada um tem uma vida, exatamente para cuidar da sua. O que me revolta é ver tanta gente louca me apontar, julgar e condenar ao universo da loucura.

Nasceu em Itarantim, Bahia. Reside em Vitória da Conquista. É bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, licenciada em Letras/Inglês e Filosofia. Especialista em Direito do Trabalho, Violência contra a Mulher e Docência no Ensino Superior. É poetisa e escritora. Possui o título de Doutora Honoris Causa em Literatura outorgado pela Academia de Letras do Brasil-SP, onde ocupa a cadeira 38. É colunista da Revista Escribas. Autora de “O Reflexo atual da subjugação feminina” entre outros livros de poesias e contos, participa em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Ama correr, costurar, pintar, fazer pão, ver bons filmes e ler nas horas vagas. Orgulha-se em ser mãe e avó.
7 respostas em “Diário de uma louca”
Chirles, isso não é loucura não. É olhar crítico que chacoalha aquilo que está acomodado e não quer sair do lugar de conforto.
Dessa “loucura” é que o mundo precisa. 🙂
Precisamos ser um pouco loucos para conviver neste mundo.
Muito bom o seu texto, Chirles.
Já fui taxada de louca, muitas vezes,só por pensar diferente. Isso me faz pensar: que bom! Eu gosto de ser diferente e não é por birra, mas só de pensar em.não.arvumentar ou refletir, isso não faz meu estilo. Então que bom que sou louca.
É engraçado. As vezes tenho esse mesmo pensamento. De me tacharem de louco sabendo que não sou louco. (Afinal, durante anos, as pessoas confundiam (e ainda confundem) autismo com loucura, não!!)
Só por ser diferente, por não seguir as modinhas, por ter rotina própria e imutável, por querer fazer sempre as mesmas coisas por conta própria e tantas coisas mais que muitas pessoas chamaram-me de louco, Chirles.
Mas depois me senti até melhor quando minha terapeuta disse aos meus pais que era o mais são de todos.
Pois é, justo eu, o considerado louco e diferente da família. Talvez comparado a estas pessoas que citasse na crônica, sou considerado uma pessoa feliz comigo mesma.
O problema não somos nós. É o mundo a nossa volta que pirou por causa da suposta igualdade e padrão impostos a eles por uma sociedade que vive a insanidade desde tempos idos.
Respondo as pessoas que zombaram desta forma de mim contra-zombando delas porque querem ser “normais”.
Parafraseando Raul Seixas de novo, vamos continuar com nossa maluquez com pitadas de lucidez.
É isso. Um grande abraço e até a próxima.
Um brinde as mulheres autênticas que são rotuladas de loucas que pessoas loucas que se proclamam autênticas.
Sensacional! Creio que você sofre de excesso de consciência. Isso é realmente uma loucura neste mundo. Um abraço, querida!! Adoro sua escrita e reflexões.
Parabéns, o seu relato em forma de crônica é muito bom!😁