“A gente vai crescendo, vai crescendo, e o tempo passa
(Música “A Praça”, de Carlos Imperial)
E nunca esquece a felicidade que encontrou
Sempre eu vou lembrar do nosso banco lá da praça”
De iluminação bucólica e amarelada, embrulhada por galhos que se contorciam até encontrar as fiações, nossa praça, do povo, dos jovens da noite, dos idosos do dia, destacava-se no lugar central do meu território de origem. Onde o verde vira cinza e a cana nos pastos invade, ela, com seu verde pujante e flores de Ipê que anunciavam a primavera, resistia.
Nada mais interiorano, de um Brasil entre o agrário e o oligárquico, que uma praça e uma igreja que soa as badaladas de hora em hora. Badaladas que fazia a dona de casa correr para servir o almoço das crianças prestes a chegar da escola, e também que informava os óbitos e anúncio da próxima missa do sétimo dia.
Caminhar entre suas rachaduras e lindas flores daquele Ipê era quase obrigação para aqueles que passavam pelo centro da cidade. Sentar em um banco encomendado por famílias da alta sociedade e observar o andar rastejante daquelas senhoras era, além de privilégio dos que tinham tempo, a diversão de jovens que de lá encontravam as primeiras paqueras e namoros.
Assim como todos os jovens da época dos meus pais, irmãs e também da minha, as férias eram um dos momentos mais esperado. Esperávamos os amigos chegarem da cidade grande e, com aqueles que ali já moravam, reuníamo-nos até a madrugada, quando os pais já preocupados saiam em busca de seus filhos. A primeira bebida alcoólica, cigarro e também os primeiros olhares mal intencionados partiram daquela praça.
Nunca recebi um olhar mal intencionado, ou nunca quis recebê-lo. Ser o “viado” neste Brasil rural nos faz criar ferraduras e mecanismos para suportar qualquer violência. Enquanto amigas trocavam seus olhares com seus futuros maridos, eu pedia aos céus para me tirar de lá.
Ser um dos “viadinhos” da cidade não me fez esconder atrás dos bancos e árvores. Suportava as brincadeiras e risadas com o que podia ser feito. Ficar quieto. Se para me reconhecer como um ser de desejos opostos ao que se esperava de mim já era uma tarefa árdua, somado a um contexto que não visualizava referenciais de aceitação, reagir a ataques diversos, de violências diversas, era inimaginável. O silêncio e dor, por mais traumático que seja, eram minhas melhores drogas.
Não me esquivava de passear na pracinha, apesar de todos os meus desejos repulsivos que me levava a pensar em desaparecer ou que aquilo se detonasse como uma faísca de pólvora. Colocava a melhor roupa para desfilar nos labirintos que se faziam entre a fonte iluminada, a igreja badalante, as imensas árvores e também entre mesas e carrinhos de cachorro quente.
Dos meus desejos, os céus me concederam sair de lá. No entanto, ainda me pego pensando nos momentos bons que tive com amigos e família naquela praça, nas risadas que dei, e nas travessuras quase proibidas da adolescência. Lá, passou uma vida, casamentos de amigos, irmãs e parentes.
Em meio a retornos e partidas, agora estou aqui. Diante dela. Eu, envelhecido e com rugas, já não posso mais esconder o efeito do tempo. Ela, desnuda e descampada, foi arrasada pelos devaneios políticos. O prefeito achou melhor implodi-la para lhe dar um aspecto mais moderno. Em tempo de harmonização do velho, ele decidiu apagar seu passado.
Eu deveria estar feliz, seria meu grand finale. Eu venci, e aquele espaço que foi lugar para minhas tristezas está lá, destruído. Deveria rir alto, gritar, e abrir um espumante. No entanto, estou triste. Vê-la aos pedaços, com suas árvores arrancadas para dar lugar a outras, novas e cafonas, não me fez melhor.
Suas pedras portuguesas, antes tão criticadas por seu desnivelamento característico, eram símbolo e imagem de uma história que não deveria ser apagada apenas com novos concretos. Concretos brega, a propósito. Não é a mesma praça, nem o mesmo banco. Ou melhor, nem os sobrenomes das famílias estampados nos bancos restaram, todos triturados em meio a árvores e jardins. Assim como a cana que nos intoxica no entardecer, e nossa memória que se evapora, tudo é fuligem.
Aos poucos, todos morremos. Hoje o Ipê, as pedras e os bancos que embalaram muitos namoros. Amanhã serei eu, também substituído, fuligem solta pelo ar. E o moderno, recheado de concreto e artificialidade, não nos poupará, mesmo diante de nossas certezas.

Atualmente morando em Córdova (Argentina), é administrador licenciado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Administração Pública pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), mestre em Administração pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e doutorando em Administración y Política Pública pela Universidad Nacional de Córdoba (UNC – Argentina). Participou de coletâneas e tem contos e poemas publicados pela Editora Metamorfose e Editora da UFSC. E-mail: carlos.carubelli@gmail.com
2 respostas em “A mesma praça, o mesmo banco…”
Uma história pra gente pensar que ninguém é insubstituível. Nem as praças. Nem as pessoas.
Por essas e outras que digo sempre: o legado é maior que o lucro, mesmo o momento mais triste das nossas vidas. Boa crônica.
Verdade, Mario.